Durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH), especialistas e senadores afirmaram que a política de combate ao tráfico humano no Brasil requer uma legislação mais firme, capaz de alcançar formas de tráfico de pessoas ainda não tipificadas no ordenamento jurídico do país. Para os participantes do debate, que ocorreu nesta segunda-feira (9), é fundamental a integração de dados e o fortalecimento da cooperação internacional, da investigação especializada, do acolhimento às vítimas, bem como a conscientização da sociedade.
Esta foi a terceira audiência sobre crimes transnacionais e direitos humanos, atendendo a requerimentos apresentados pela presidente da CDH, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), e pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE).
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 2,5 milhões de pessoas são vítimas do tráfico humano no mundo, movimentando uma economia criminosa de mais de US$ 32 bilhões por ano.
Ainda de acordo com oRelatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2024, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas (UNODC), que abrange 156 países, entre 2019 e 2022 o número de vítimas detectada cresceu 25% em todo o mundo. O número de crianças vítimas cresceu 31%, sendo o aumento entre meninas de 38%, o que revela, segundo Girão “um padrão brutal de exploração sexual”.
De acordo com o painel de dados do Ministério da Justiça, entre 2017 e 2022 foram identificadas 1.811 vítimas de tráfico de pessoas em território nacional. Dessas, mais de 80% eram do sexo feminino e mais da metade tinha entre 10 e 29 anos.
Como exemplo do quanto esse crime é constante na realidade brasileira, o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Pernambuco e coordenador do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no estado, Paulo Alcântara, relatou que, na madrugada desta segunda-feira (9), uma brasileira de 22 anos, vítima do tráfico de pessoas, foi devolvida à sua família, no Recife. Segundo ele, a vítima já estava em Mianmar, prestes a ser negociada para “algum país árabe”. Para Alcântara, o problema só pode ser enfrentado por meio de uma política pública eficaz, que coloque como eixo a educação e a “necessidade de ampliar o patamar civilizatório”.
— Isso é real, não é filme não. A jovem tem idade para ser minha filha, ela tem 22 anos (…). Eu pensei que ela ia ser morta, ela teve uma proposta de venda, ela ia ser negociada, quem sabe, para um país árabe qualquer.
Girão afirmou que um dos principais fins do tráfico de pessoas no mundo está ligado à exploração sexual, ao trabalho análogo à escravidão e à adoção ilegal. Para ele, essa “chaga” requer uma legislação mais firme, capaz de alcançar formas de tráfico ainda não tipificadas no ordenamento jurídico do país. Além disso, segundo o senador, requer cooperação internacional, investigação especializada, acolhimento às vítimas e conscientização da sociedade.
— Esses números não são apenas estatísticas, são rostos, são histórias de vida. Existências interrompidas por redes criminosas que se aproveitam da vulnerabilidade, da pobreza, da falta de acesso à informação e da ausência do estado.
Os debatedores disseram que a tragédia é global e que os dados não revelam apenas a persistência da prática criminosa, mas que vêm aumentando e tomando outras roupagens. Jonathan Hall,representante da Fundação Sound of Freedom, observou que o reconhecimento do tráfico humano como uma ferramenta moderna de escravidão tem ganhado força e destacou a situação da América do Sul, que registra fluxos de tráfico multidirecionais.
Segundo ele, embora os dados do Projeto Track4Tip, da ONU, sejam limitados, o Brasil é “fonte, destino e ponto de trânsito em diversas formas de tráfico”. Ele defendeu grande colaboração internacional nesse combate.
— A Fundação Walk Free, uma fundação especializada, estima hoje 50 milhões de pessoas em escravidão moderna ao redor do mundo — 12 milhões desses 50 milhões são crianças. A conexão entre o tráfico humano e a escravidão tem muitas implicações. Na América do Sul, os dados extraídos do relatório da ONU revelam que existem muitos desafios distintos, mas estão muito interconectados. Na América do Sul nós observamos uma prática frequente de tráfico interno e transfronteiriço com mulheres e meninas representando uma proporção significativa das vítimas.
O Brasil registrou 90.256 casos de desaparecimento de menores de 0 a 17 anos entre 2021 e abril de 2025, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Os debatedores ainda informaram que o tráfico humano também está relacionado ao trabalho forçado na agricultura, na mineração, no trabalho doméstico e no tráfico de órgãos.
Sobre o trabalho análogo à escravidão, somente neste ano, já foram realizadas 70 forças-tarefas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em conjunto com outras instituições, como a Polícia Federal.
— A maioria das denúncias chegam para a gente sem mencionar o tráfico de pessoas, mas quando chegamos ao local percebemos que são trabalhadores migrantes, trabalhadores que se descolam de uma unidade da federação para outra a fim de buscar melhores condições de vida e são explorados pelo trabalho escravo destacou, o procurador do Trabalho e coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Luciano Aragão Santos.
Ele ainda alertou para a necessidade de uma política de assistência às vítimas de tráfico de pessoas ou que estão em situação de trabalho escravo e foram resgatadas para que elas não sejam reinseridas no ciclo de exploração.
O chefe da Divisão de Repressão ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes da Polícia Federal, Henrique Oliveira Santos, destacou que o principal motor desse tipo de crime é o lucro. Segundo ele, o chamado “mercado do tráfico humano” é “extremamente lucrativo”, o que atrai organizações criminosas. Por isso, defendeu que os órgãos de investigação e a legislação avancem no fortalecimento de mecanismos para a recuperação de ativos obtidos de forma ilícita.
— Se uma pessoa realiza o tráfico de pessoas para obter lucro, a gente não pode deixar que ela tenha esse lucro. O que nós temos que fazer, e isso já na fase de investigação, é realizar essas atividades.
Ele ainda defendeu que o recurso, recuperado com as ações de investigação e apreensão do dinheiro do tráfico de pessoas, em vez de ser direcionado ao Fundo de Apoio ao Registro Civil de Pessoas Naturais (Funarpen), faça parte de um fundo especial, a ser criado, voltado para a prevenção, combate e a assistência às vítimas do tráfico de pessoas e contrabando de imigrantes.
Segundo Henrique Santos, existem hoje em aberto na Polícia Federal 188 inquéritos relacionados ao tráfico internacional de pessoas, o que foi considerado pelos senadores Eduardo Girão e Damares Alves, um número muito baixo em relação à quantidade de registro de pessoas desaparecidas no país. Para eles, a defasagem de dados evidencia uma possível subnotificação de casos e um problema no cruzamento de informações e nos cadastros sobre esse tema no país.
— Os número que nós temos são reais? Não. Nós vamos precisar avançar nos cadastros e no cruzamento de dados. O que eu tenho de real: apenas 188 inquéritos na PF, aí eu vou ao Ministério do Trabalho e ele tem o número dele, aí o outro juiz tem um outro número, mas esses dados não estão sendo cruzados. Nós estamos diante de um gravíssimo problema — alertou Damares Alves.
A especialista em direito internacional e migracional Denise Abreu Cavalcanti também reforçou a necessidade de se estabelecer uma política de Estado com dados compilados que possam nortear as medidas de enfrentamento.
— Infelizmente nosso sistema falha porque não há um diálogo entre nossas instituições. Os dados não são compilados. Não há que se falar no enfrentamento ao tráfico de pessoas e no tráfico de pessoas se nós não tivermos dados compilados. A Polícia Federal por fazer um excelente trabalho quando se trata de tráfico internacional, o Ministério da Justiça pode ter as suas políticas, mas eu ressalto aqui, a política não tem que ser de governo, ela tem que ser de Estado para que tenha continuidade.
Segundo a ONU, o Brasil registra mais de 241 rotas de tráfico de pessoas, sendo os estados do Norte e do Nordeste as que registram maior número.
O representante da ONG estabelecida em Miami, nos Estados Unidos, Fundação para Direitos Humanos em Cuba (FHRC, na sigla em inglês), Hugo Acha, disse que as frentes de combate ao crime de tráfico de pessoas precisam ir além da visão política ideológica de cada país, usando todos os recursos que estão ao dispor do Estado. Segundo ele, profissionais médicos cubanos enviados ao exterior são usados como uma prática de tráfico humano. Até 2018, disse, o Brasil pagou R$ 7,1 bilhões a Cuba por meio do intercâmbio do programa Mais Médicos.
— Você não pode justificar levar uma pessoa em situação de escravidão, expô-la a todo tipo de abuso, porque os relatórios que a gente tem apresentado demonstram que essas práticas medonhas colocam pessoas numa falta de defesa absoluta.
A coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Imigrantes do Departamento de Migrações, da Secretaria Nacional de Justiça, Marina Bernardes de Almeida, afirmou que, desde 2004, o Brasil aprimora a Política Nacional de Enfrentamento a partir da ratificação do Protocolo das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas.
A Lei 13.344, de 2016 , estabelece a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e também sobre medidas de atenção às vítimas. Marina de Almeida reafirmou o compromisso da pasta em trabalhar no fortalecimento da política, atuando na coordenação das ações junto às redes de atenção nos estados e municípios.
A presidente do Comitê Nacional de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas do Conselho Nacional do Ministério Público, Cintia Menezes Brunetta, também defendeu o fortalecimento das redes locais e estaduais para que a coordenação nacional seja efetiva, também com a compilação e monitoramento dos dados.
A procuradora defendeu como pilares fundamentais para a efetividade da política nacional de enfrentamento a unificação de dados, a formação e capacitação, especialmente dentro do Sistema de Justiça e a reinserção social, a sensibilidade e o financiamento das ações.
— O primeiro pilar, o da informação, que envolve produção de dados, envolve compartilhamento de dados. Envolve o desenvolvimento de técnicas investigativas de inteligência, envolve informação precisa que possa ser monitorada e que possa ser utilizada. De fato, a despeito de todos os esforços do Ministério da Justiça, da Secretaria Nacional de Justiça, ainda faltam dados, especialmente pela inexistência de redes locais e regionais como as que existem nacionalmente. Nós não temos sinais de alertas.
Mín. 14° Máx. 23°